domingo, 16 de outubro de 2011

Do ponto à loucura



O ponto não existe. Apenas a idéia dele, que, na verdade, é apenas uma das várias abstrações que fazem parte da estrutura conceitual da geometria. Por não ter dimensão, o ponto não ocupa lugar no espaço e, paradoxalmente, é a entidade fundamental da geometria, a área da matemática que estuda as propriedades de objetos no espaço.
Como sabemos, a menor distância entre dois pontos, pelo menos no plano, é um segmento de reta. Mas uma reta, por definição, não tem espessura, pois, se tivesse, ela seria um retângulo bem comprido - um objeto em duas dimensões- e não uma linha. A conclusão é simples: a reta, que não existe por não ter espessura, liga dois pontos que também não existem! Essa conclusão é apenas aparente; ao transformar uma idealização em realidade, somos necessariamente levados a comprometer a "pureza" da idéia.
O grande filósofo grego Platão, que viveu aproximadamente de 428 a.C. a 348 a.C., via o mundo dos sentidos com grande suspeita. Para ele, a representação de um círculo jamais será tão perfeita quando a idéia do círculo que habita a mente. Quando o leitor imagina um círculo, imediatamente um círculo perfeito aparece em algum lugar de sua mente. Já quando o leitor desenha esse círculo, ou seja, quando tenta representar essa idealização concretamente em um pedaço de papel, a perfeição vai embora. Por mais perfeito que seja o desenho, o compasso ou a impressora a laser, o desenho de um círculo jamais será perfeito como a idéia de um círculo. Só há perfeição das figuras geométricas no mundo das idéias.
Platão ilustrou sua filosofia com a "alegoria da caverna". Imagine, disse ele, vários escravos em uma caverna, acorrentados de forma a poder olhar apenas para a parede à sua frente. (A "democracia" grega não só aceitava a escravidão, como excluía os escravos da participação política.) Atrás dos escravos, filósofos da Academia de Platão preparavam uma fogueira e manipulavam objetos, cujas sombras eram projetadas na parede vista pelos escravos. Os filósofos pediam aos escravos para descrever imagens projetadas na parede. (Adaptação livre da idéia de Platão.)
O ponto crucial do argumento é que os objetos, cujas sombras eram projetadas, eram figuras geométricas "perfeitas", como o círculo ou o quadrado. No entanto, tudo o que os escravos viam eram sombras imperfeitas, distorções dos objetos originais. A conclusão de Platão é que o mundo dos sentidos não reproduz a perfeição do mundo das idéias, apenas se aproxima dela.
Ao tentarmos reproduzir, através de construções geométricas e equações matemáticas, a realidade do mundo natural, estaremos sempre no papel dos escravos, conscientes das perfeições abstratas e das imperfeições concretas. Nossa percepção sensorial do mundo será sempre limitada, e nossa representação também. O curioso é que o mundo que "está lá fora" é representado "aqui dentro", ou seja, dentro de nossas mentes. Temos duas realidades coexistindo dentro de nossas mentes: uma realidade abstrata, relacionada com o mundo das idéias, construída de "dentro para fora", e uma realidade concreta, construída de "fora para dentro".
Em uma mente sadia, essas duas realidades coexistem e se complementam, uma inspirando e reforçando a existência da outra. Quando essas duas realidades entram em choque, as fronteiras do que é real e do que é imaginado se confundem. Coisas que pertencem ao mundo das idéias se tornam "reais" e coisas "reais" se transformam em idealizações. Às vezes, esse tipo de efeito é obtido com certas drogas ou em certos tipos de patologias mentais. O que me lembra o personagem do conto "O Alef", de Jorge Luis Borges, que podia vislumbrar todo o Universo, o passado e o futuro, de um ponto em seu sótão. Talvez o enigma do infinito esteja mesmo escondido por trás da aparente simplicidade do ponto.


Marcelo Gleiser é físico teórico do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Retalhos Cósmicos".

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