quinta-feira, 24 de novembro de 2011

"O mercado sozinho jamais será capaz de universalizar o acesso à internet"




Flávio Gonçalves - por Gésio Passos - Observatório do Direito à Comunicação
23.11.2011

Recentemente, o jornalista Flávio Silva Gonçalves concluiu o mestrado no programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Ao longo de dois anos, ele investigou como infraestruturas do setor elétrico podem contribuir para a universalização do acesso à internet. A dissertação teve como objeto uma parceria entre o governo do Pará e a empresa estatal Eletronorte, uma subsidiária da Eletrobras que fornece energia para a Amazônia Legal. Em 2007, as duas instituições assinaram um convênio compartilhando uma fibra óptica para prover serviços de telecomunicações. A conclusão do pesquisador é clara: a utilização de infraestruturas controladas pelos governos é fundamental para a inclusão digital. Confira entrevista exclusiva do pesquisador para o Observatório do Direito à Comunicação.

Observatório do Direito à Comunicação - Por que você decidiu estudar o NavegaPará?

Flávio Silva Gonçalves -
 Meu interesse era pensar a forma de participação dos governos e de suas estruturas públicas no processo de universalização do acesso à internet, compreendido como um direito do cidadão. Em vários países, os governos estão atuando diretamente nessa área. Procurei uma experiência concreta no Brasil em que algum governo estadual ou municipal que estivesse fazendo algo de inovador, já que o provimento do acesso à internet no Brasil ainda é visto como um serviço do mercado, de poucas empresas privadas. A infraestrutura de telecomunicações no Brasil chega onde tem cliente com relativa renda, sem competição e com preços altíssimos para a maior parte da população. Ou seja, fui procurar um lugar em que um governo estivesse atuando diretamente nessa área. No Pará, encontrei uma ação em parceria do governo do Estado com a Eletronorte. Analisei o programa entre 2007, quando foi implementado, e 2010. Até 2006 apenas quatro dos 143 municípios do estado tinham conexão à internet via cabo. Essa foi a realidade que o programa teve que enfrentar.

Você falou que buscava uma experiência concreta de um governo fazendo algo inovador. Qual foi a inovação que você observou no NavegaPará?
Foram duas. A primeira foi utilizar as linhas de transmissão de energia elétrica para prover serviços de telecomunicações como o acesso à internet. Sabe aqueles cabos de transmissão que cortam o país levando e trazendo energia das usinas até os centros urbanos e rurais? Ali existe um "tesouro": um cabo de fibra óptica que monitora o sistema elétrico por 24 horas (algo exigido por lei). Ele se chama Optical Power Ground Wire (OPGW) ou fibra óptica em cabo pararraio. Esse cabo tem vários pares de fibra óptica que são subutilizados já que a demanda de trafegar dados para monitorar o sistema elétrico é mínima diante do potencial técnico de transmissão de dados. O Brasil é cortado por essas linhas e cerca de 30 mil quilômetros estão sob o controle de empresas que ainda são estatais do sistema Eletrobras. Outra parte está sob controle de empresas privadas, mas a maior parte ainda é patrimônio público controlado por empresas estatais. Está praticamente pronta para ser utilizada como uma grande rede pública. A segunda inovação foi fazer um modelo de negócio híbrido. De um lado, a Eletronorte vendia capacidade de tráfego para qualquer empresa ou provedor interessado em levar o serviço de acesso à internet até um cliente final. De outro, o governo do Pará, por meio de convênio, utilizava parte dessa infraestrutura para conectar órgãos públicos estaduais, prefeituras, telecentros e entidades da sociedade sem cobrar pelo serviço. Era uma fonte de renda para a Eletronorte e uma infraestrutura de desenvolvimento para o estado.

Qual era o papel de cada um no convênio?

Com a assinatura do convênio, 50% da capacidade da fibra ficou com o governo do Estado e a outra parte com a Eletronorte. A empresa cedeu um par de fibra dos 24 disponíveis nas suas linhas de transmissão no Pará. Em contrapartida, o governo fez os investimentos necessários em eletrônicas e em equipamentos para colocar esse par de fibra óptica com capacidade elevada de trafegar dados e disponibilizar o acesso à internet.

Esse processo não gerou prejuízos financeiros para a Eletronorte?

A empresa atua na área de energia e possui essa infraestrutura que está disponível. Ela não teve que investir recursos na parceria, apenas cedeu um par de fibra. Foi colocada uma condição: apenas a Eletronorte poderia comercializar a utilização da rede para outras empresas interessadas em prover serviços de telecomunicações no Pará. Oi, Embratel, Amazontel, Nortelpa, Vivo, Zumpa, CapitalSat e TIM eram clientes da empresa. Cerca de 80% do faturamento da Eletronorte vinha de serviços prestados a Oi e Embratel. Essas empresas de telecomunicação não tem fibra na região e basicamente usam satélite, que é muito mais caro e com uma confiabilidade e qualidade para trafegar dados muito menor. E construir uma rede de fibra é um investimento que estas grandes operadoras não querem fazer. O que elas fizeram? Alugaram a capacidade da Eletronorte para levar o acesso aos serviços de telecomunicações até os consumidores finais. A estatal saiu de um faturamento mensal nesses serviços em janeiro de 2010 de R$ 900 mil para R$ 1,7 milhão em setembro do mesmo ano. Entre os anos de 2006 e 2009, a receita da Eletronorte com a prestação de Serviços de Comunicação Multimídia (SCM) apresentou crescimento elevado saindo de R$ 1,7 milhão para R$ 9,8 milhões. Um aumento superior a 500%. Isso apenas no Pará. A demanda é muito grande e cada vez maior diante de um processo de convergência da comunicação. Se a capacidade da rede instalada no Pará naquele momento fosse completamente contratada, o faturamento poderia chegar a R$ 24 milhões mensais. A capacidade dessas fibras é gigantesca. Para a Eletronorte a parceria permitiu expandir no território paraense sua área de negócios responsável pela prestação de serviços de telecomunicações que atende operadores privados alugando capacidade de tráfego de dados.

Em relação a política de inclusão digital, tocada pelo governo, quais foram os resultados?

O governo tomou uma decisão política de prover acesso à internet com o objetivo de utilizar as tecnologias da informação e comunicação para o desenvolvimento do Pará e ao mesmo tempo economizar recursos com os serviços contratados para os órgãos públicos estaduais e municipais. Estamos falando de um governo que pagava, por exemplo, R$ 15 mil mensais para uma conexão de 256 Kbps em Marabá. Isso quando alguma operadora prestava o serviço. O Estado investiu no convênio recursos financeiros estimados em R$ 4,6 milhões para viabilizar o funcionamento da rede e outros recursos em infocentros e equipamentos para conectar os órgãos públicos e praças com acesso livre. Em 2006, dos 143 municípios paraenses apenas quatro tinham acesso à internet através de fibra óptica. Em 2010, a conexão à internet em alta velocidade estava disponível pela estrutura do NavegaPará para 52 municípios paraenses, sendo que em 23 destes a única opção de conectividade era esta oferecida pelo governo estadual. Desta forma, no mesmo período o governo do Estado aumentou de 400 para 1.389 o número de pontos conectados à internet.

Ou seja, o investimento compensava em termos de retorno social.

Além disso, existiam dois interesses econômicos importantes que motivaram o governo do Pará a investir nesta parceria. O primeiro era constituir uma alternativa às duas empresas privadas que ofereciam serviços de telecomunicações aos órgãos públicos a preços considerados exorbitantes e com isso diminuir seus custos. E, de fato, os números comprovam que além de levar conexão para pontos que não dispunham da oferta pelas operadoras privadas, o governo conseguiu economizar recursos públicos cancelando 75% (297) das assinaturas de acesso à internet que mantinha junto à OI e Embratel. O valor mensal para custear as conexões à internet dos órgãos públicos que antes do NavegaPará foi superior a R$ 1 milhão, em agosto de 2010 diminuiu para R$ 260 mil. O segundo interesse era comercializar dados também através da Prodepa, a companhia estadual de processamento de dados. Mas aí as regras do convênio com a Eletronorte não permitiram já que apenas a empresa federal poderia fazer esse tipo de operação.

E as empresas privadas? Qual o impacto para elas? A perda de clientes do serviço público não inviabilizou os negócios na região?
As grandes empresas do setor (Oi e Embratel) eram ao mesmo tempo beneficiadas e prejudicadas pela rede da Eletronorte. Por um lado, essas empresas deixaram de faturar com órgãos públicos que passaram a ser atendidos pela conexão oferecida gratuitamente pelo governo do Estado e ganharam concorrentes locais que passaram a contar com a nova rede para também prestarem serviços de telecomunicações. Por outro lado, essas e outras empresas passaram a utilizar a infraestrutura da estatal para oferecerem novos serviços em novas localidades e com isso aumentaram seu faturamento sem que fosse preciso realizar os investimentos para a instalação de fibras ópticas próprias. Prova de que as grandes empresas também foram beneficiadas pela infraestrutura de rede é que em agosto de 2010 a Oi e a Embratel representavam 80% do faturamento da Eletronorte no Pará. O que essas empresas querem é alugar essas fibras e manter o "oligopólio" no atendimento ao consumidor final. Assim elas não precisam investir em infraestrutura e continuam com a assinatura dos serviços pagos pelos clientes. Mas quando a Eletronorte aluga a rede para qualquer empresa, seja ela grande ou pequena, aí pode surgir uma competição.

E essa competição aconteceu de fato?

Qualquer empresa pode alugar essa infraestrutura da Eletronorte por R$ 600 em média para trafegar 1 Mega real (não é aquele 1 mega que contratamos em casa e só recebemos 10%). E com isso ao invés de uma ou duas empresas você pode ter 4 ou 5. Quem sabe 10. Mas aí é dinâmica de mercado. Não dá pra garantir que algumas não vão falir, que as novas terão capital para investir e se não terão clientes. Estamos falando de poucas empresas consolidadas que faturam bilhões e tem capital para fazer investimentos. Surgir um competidor local capaz de fazer frente é difícil, mesmo usando essa infraestrutura de rede pública pagando os mesmos R$ 600,00 das grandes operadoras. A grande questão é se essa infraestrutura pública será utilizada apenas para servir cidadãos e instituições através das empresas ou se o Estado também pode levar a conexão gratuita para as instituições públicas, para quem não pode pagar e até mesmo cobrando de quem pode.

O que essa experiência no Pará mostrou?

A partir do que aconteceu no Pará, verificamos que é possível colocar essa infraestrutura para atender interesses privados, dado que as empresas do setor demandam esse tipo de estrutura e, ao mesmo tempo, disponibilizar gratuitamente para órgãos públicos e cidadãos a conexão à internet visando garantir o direito à comunicação. Agora esse processo é contraditório e instável, permeado de avanços e recuos. Tudo depende da junção de interesses políticos-econômicos representados na constante disputa entre os grupos que estão nos governos, empresas públicas e privadas e cidadãos. É a "velha" luta entre as classes e o impacto dela no funcionamento das infraestruturas que ainda são controladas pelos governos. De qualquer maneira, no mundo cresce o entendimento de que o mercado sozinho jamais será capaz de universalizar um direito como é o acesso à internet.


Confira a íntegra da dissertação de Flávio Silva Gonçalves aqui .

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